quinta-feira, 10 de março de 2016

PEDAGOGIAS DA SEXUALIDADE

Marília Pinto de Carvalho
Professora na Faculdade de Educação da USP


O CORPO EDUCADO: PEDAGOGIAS DA SEXUALIDADE
Guacira Lopes Louro (org.) Belo Horizonte: Autêntica, 1999, 176 p.



Cadernos de Pesquisa

On-line version ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui.  no.109 São Paulo Mar. 2000


http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742000000100012 



O corpo e suas paixões, necessidades e desejos tradicionalmente têm sido temas árduos para a pesquisa em educação. Conformado na estreita divisão entre mente e corpo, o campo educacional freqüentemente rejeita, abafa, desqualifica ou ressignifica os temas relativos à sexualidade, à normatização dos corpos, aos afetos envolvidos nas relações pedagógicas.
Ao mesmo tempo, tais temas e práticas, evidentemente, desafiam a todo momento os professores e professoras dos diversos níveis escolares, seja de forma mais evidente pelos índices crescentes de pais e mães adolescentes, ou pelas exigências de inclusão da educação sexual nos currículos escolares, como sugerido nos Parâmetros Curriculares Nacionais; seja por questionamentos mais sutis de práticas escolares sexistas ou das dificuldades em incluir de modo efetivo temas ligados às desigualdades de gênero de cor (ou raça) no interior dos projetos pedagógicos.
Nesse contexto, a publicação de O corpo educado: pedagogias da sexualidade, coletânea organizada por Guacira Lopes Louro, é muito bem-vinda. Composta por seis ensaios de diferentes autores, quatro deles professores em outros países, a obra permite ao leitor aproximar-se das mais recentes tendências no debate sobre a sexualidade e as dimensões sociais do corpo, com ênfase sobre as difíceis relações entre a escola ou as pedagogias escolares e o corpo e a sexualidade.

Abrindo o livro, Guacira Lopes Louro nos oferece uma síntese de alguns dos autores de língua inglesa que têm refletido sobre o papel da escola na construção de identidades sexuais e de gênero, pontuando sua leitura com as próprias reflexões e lembranças sobre seu processo de escolarização, ao lado de depoimentos colhidos em entrevistas de pesquisa. Dessa forma, ela nos provoca a também exercitar a reflexão, a buscar na memória as situações, os detalhes, as regras e as transgressões que constituíram parte de nossa própria identidade. E aponta um caminho possível para tentar "desarranjar, reinventar e tornar plural" a verdade e a certeza sobre os corpos e a sexualidade (p.33).
Dentre os textos que compõem a coletânea, dois outros se vinculam diretamente às práticas escolares. Debora Britzman, professora canadense, sugere formas extremamente provocativas de se pensar a educação sexual nas escolas, discutindo "algumas das coisas que impedem o desenvolvimento de uma pedagogia da sexualidade que seja interessante e estimulante" (p. 86). Utilizando uma abordagem psicanalítica, e também lançando mão de Foucault, Britzman faz uma revisão das diferentes versões da educação sexual: a versão "normal", de raízes higienistas e controladoras, a versão "crítica", desenvolvida por educadores/as preocupados/as em questionar as hierarquias de sexo, gênero e etnia/raça e "aquela versão que ainda não é tolerada" (p. 92). Para construir ou insinuar o que seria essa "versão não tolerada", a autora propõe que o centro da discussão não seja nem biologia, nem anatomia, nem cultura, nem papel sexual: "o que está em jogo é a fantasia, o Eros e as vicissitudes da vida" (p. 92). E pergunta-se: "Será que a pedagogia pode começar com essas surpresas?" (idem); "pode o sexo ser educado e pode a educação ser sexuada?" (p. 93); "o que está em jogo quando enfrentamos as condições que os jovens e os adultos nos apresentam quando eles moldam suas vidas? E o que ocorre se o que está em jogo são os limites de nosso conhecimento?" (p. 105); "de que forma os educadores e os estudantes podem se envolver eticamente em uma educação sexual vista como indistinguível de uma prática de liberdade e do cuidado de si?" (p.107). Enfim, seu texto é um convite a novas perguntas e um desafio aos limites de nosso olhar e de nossa curiosidade.

Já bell hooks, teórica feminista norte-americana, no ensaio "Eros, erotismo e o processo pedagógico", põe em mãos de educadores e educadoras um texto simples e direto, baseado em suas lembranças e experiências como professora universitária, em que questiona com propriedade e energia nossa crença de que, na sala de aula, apenas a mente está presente e não o corpo. A autora mostra como a exclusão do corpo está articulada a uma compreensão estreita do erotismo em termos sexuais, levando-nos a excluir do processo pedagógico toda paixão, todo envolvimento emocional. E propõe que se vá além das separações entre público e privado, universo acadêmico e "mundo externo", idéias e paixões, aprendendo a entrar na sala de aula inteiros e não como "espíritos descorporificados" (p. 117). Dessa forma, hooks convida professores e professoras a reencontrar a paixão pela sala de aula, "descobrir novamente o lugar de Eros dentro de nós próprios e juntos permitir que a mente e o corpo sintam e conheçam o desejo" (p. 123).
Três diferentes abordagens do debate sobre a sexualidade e os corpos podem ser encontradas nos textos de Jeffrey Weeks, Richard Parker e Judith Butler, que completam essa coletânea. Weeks, professor de sociologia em Londres, discute os modos pelos quais têm-se atribuído, nas sociedades modernas, uma extrema importância e um denso significado ao corpo e à sexualidade. Partindo da idéia de que "os corpos não têm nenhum significado intrínseco" (p. 38), busca reconstruir historicamente nossa maneira de compreender a sexualidade, mostrando: como as definições dominantes de sexualidade emergiram na modernidade; as relações de poder aí envolvidas; como têm sido definidas e redefinidas as identidades sexualizadas nos últimos cem anos; e as formas de regulação social dos corpos e da sexualidade. E nos incita a pensar, a partir dessa história, qual é o futuro da sexualidade e do corpo.
Em "Cultura, economia política e construção social da sexualidade", Richard Parker, professor de Antropologia no Rio de Janeiro e em Nova Iorque, traça uma visão geral "do desenvolvimento da pesquisa antropológica sobre sexualidade e o comportamento sexual no final dos anos 80 e nos anos 90, destacando as principais perspectivas teóricas que têm orientado as análises comparativas" (p. 127). Seu panorama permite concluir que nesse período a pesquisa voltou-se crescentemente para a construção social da vida sexual, destacando a complexidade dos sistemas culturais e sociais que oferecem os contextos nos quais as interações sexuais têm lugar e nos quais elas adquirem significado para os atores sociais. E mostra também que, ao lado da ênfase na noção de significado, cresce a atenção para as relações de poder na organização da vida sexual, ligando a investigação sobre as culturas sexuais à análise dos sistemas econômicos e políticos e integrando questões relativas ao significado a questões relativas à estrutura.
E é exatamente o exame dos limites discursivos do "sexo" o tema do ensaio de Judith Butler. Trata-se de tradução de parte da introdução de seu livro Bodies that matter, obra importante nos debates feministas atuais sobre a diferença sexual e o conceito de gênero. Esse texto é uma amostra compacta do pensamento de Butler, apresentando alguns de seus conceitos centrais em torno à materialização, à performatividade e à citacionalidade, com os quais ela busca responder às críticas que vêm sendo postas às "descrições construcionistas do gênero, não para defender o construcionismo em si, mas para questionar os apagamentos e as exclusões que constituem seus limites" (p.166). Isto é, para, de forma estimulante, ir além das habituais definições construcionistas do gênero.

Enfim, trata-se de uma coletânea diversificada tanto em relação à abordagem teórica quanto à disciplinar, tanto em termos de enfoque quanto de temáticas. A iniciativa de traduzir os textos estrangeiros, trabalho cuidadoso efetuado por Tomaz Tadeu da Silva, torna acessível ao leitor brasileiro uma gama importante de idéias e questões que podem contribuir para levar a um novo patamar o debate sobre as relações das pedagogias com a sexualidade. A reparar, apenas a ausência das referências bibliográficas no texto de bell hooks e a falta de informação sobre as datas e o contexto de produção de alguns dos artigos. Também teria sido útil uma introdução que esclarecesse para o leitor os critérios da organizadora ao selecionar e agrupar esses textos, o que poderia funcionar como um guia de leitura e uma orientação para os mais desavisados.
Pequenos detalhes, contudo, diante da importância dessa publicação, cuja riqueza de idéias, desafios e questões desvela novas possibilidades para o debate sobre o corpo e a sexualidade no campo educacional.

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