sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Entrevista: João Wanderley Geraldi

Entrevista: “Professor não pode ter medo de errar”

Assunto: Uso social da língua
 
Autor: João Wanderley Geraldi, NPL nº 10
W. Geraldi
Professor não pode ter medo de errar
 
América Marinho
O que levou o lingüista e professor universitário a se preocupar com as questões de ensino da língua na educação básica? 
Eu comecei como professor de ensino noturno na educação básica. Quando fui para a universidade, levei minha experiência e minha história de vida. Isso me fez pensar no trabalho do professor como atividade acadêmica voltada para pesquisa e também na preocupação que se deve ter com o contexto nacional da educação. Um segundo aspecto, sem sombra de dúvida, é uma postura política: acho que a atitude de interferência do professor é fundamental e a universidade não pode ficar de fora das questões da sociedade. 

Desde a publicação do livro O texto na sala de aula (1984), aprendemos que o ensino e a aprendizagem da língua precisam desenvolver-se por meio de situações em que falar, ler e escrever tenham finalidade real. O que isso significa? 
Na década de 1980, quando comecei a tratar disso com  base em uma perspectiva discursiva da linguagem, os objetivos escolares da produção de texto eram extremamente limitados, voltados à questão da avaliação, à questão da correção. A idéia era criar uma espécie de escola mais produtiva – embora hoje a palavra esteja extremamente complicada, pois tem sido usada no sentido de concorrência no mercado. Na época era em contraposição a uma escola reprodutiva. Por exemplo, numa escola em que é difícil o acesso a material de literatura infantil, o professor corre atrás de textos adequados para as crianças. O que pode ser mais adequado para o primeiro, segundo e terceiro ano do que os textos contados, produzidos pelos próprios alunos? 

Esse material, depois de trabalhado pelo professor e ilustrado pelas crianças, pode se transformar em uma obra que fica na biblioteca e pode ser lida por outros alunos. Sua passagem pela escola é marcada por sua obra. Ao não jogar fora a história contada, o papel, o desenho e a cultura - ao mantê-los na biblioteca - você começa a criar uma coisa que valorizamos muito, a memória. 

Para alguns professores, a compreensão de que o ensino da língua se dá por meio dos usos sociais foi como um “abre-te, Sésamo”, para outros, uma enorme dor de cabeça. Como você vê essas duas reações? 
A criança participa dos usos sociais da escrita antes de entrar para a escola. Impedir esse uso na escola é separar o sujeito da sua própria vida. Muitos professores tentam essa separação, em função do processo de alfabetização. Na verdade esse processo seria muito mais produtivo se levasse em conta os usos sociais da língua. 

Aprendizagem não é só um processo de apreensão; é um processo de reflexão sobre aquilo que eu aprendo. Essa reflexão altera tudo o que eu pensava antes, porque desloca o conjunto de conceitos de que disponho para acessar o mundo. Eu diria que, quando a criança começa a refletir e interpretar a escrita, esse conhecimento passa a ocupar um lugar em sua vida. A reação dos professores depende da história de cada um. Aqueles que naquela época já eram contra a ortodoxia da escola se aproximam das nossas idéias; os que eram ortodoxos pensavam que, se não ensinassem a gramática como estavam acostumados, ficariam perdidos sem ter objeto para ensinar. 

Que gêneros devem ser privilegiados no currículo da educação básica? 
Qualquer gênero pode ser ensinado na escola, o que não quer dizer que todos os gêneros devam ser ensinados na escola. Mas o que está acontecendo a partir dos anos 90 é a crença de que todos os gêneros têm de ser ensinados na escola. Isso é um absurdo, pois se os gêneros têm que ver com as atividades humanas, por que eu vou supor que uma pessoa só conhece um gênero se for ensinado na escola? Por exemplo, se eu não tenho nenhuma situação planejada na escola, nem a necessidade das crianças mandarem um ofício para o prefeito, ensinar ofício vai tornar-se parte da obrigação de trabalhar todos os gêneros. Agora, para quê? Vai chegar o momento que eles vão aprender a fazer o ofício, que esse conhecimento vai se tornar necessário; na hora que eles forem para grêmio estudantil, avançarem no processo escolar. Os que têm essa concepção de trabalho esquecem inclusive de gêneros que são acadêmicos; circulam e são importantes dentro da escola, como o resumo, a anotação, a dissertação. Não faz mal que um aluno, durante todo seu processo de escolaridade, não tenha feito nenhum texto no gênero X ou Y. Ao longo da vida, ele vai aprender a usar aquele que tiver necessidade. 

De que critérios o professor deve se valer para indicar a leitura de textos literários de boa qualidade? 
A noção de ‘literatura de qualidade’ varia ao longo da história. Eu prefiro a idéia do grande tempo. Nós vivemos um grande tempo. Nesse tempo, há notas que permanecem, outras ficam anos esquecidas e ressurgem. Por exemplo, no século XVI, os textos de Shakespeare eram da literatura popular e hoje são considerados clássicos. Penso que a liberdade do leitor de construir sua caminhada é o principal critério que o professor pode ter. Todos nós somos capazes de fazer nossa caminhada de leitura. Em minha experiência de trabalho, vi alunos que começaram lendo Éramos Seis, de Maria José Dupré, e terminaram lendo Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro. Essa liberdade permite que a criança possa de fato começar lendo o que nós consideramos leitura barata e terminar lendo literatura de boa qualidade. Agora, se ela começou com literatura barata e terminou com literatura barata, é porque na sala de aula não estavam circulando outros livros. Livro de boa qualidade é o livro que os leitores gostam de ler. O que é um livro bom para criança? É aquele que a criança lê com prazer, que ela tem vontade. É preciso abrir um leque. Acho que isso explica melhor o conceito de liberdade que eu estou trazendo. 

Para finalizar, que recado daria aos professores brasileiros, leitores desta publicação? 
Que o professor não tenha medo de errar. Aprende-se muito errando. Acredite que o aluno com o qual você errou, vai aprender muito mais. Quando mais tarde o aluno disser ‘aquele professor errou quando fez tal coisa’, vai mostrar onde você acertou. Se você errou não se culpe, você está fazendo o máximo que pode no momento. 

Também acho essencial que os responsáveis pelas políticas públicas olhem para o professor como gente, da mesma forma que os professores precisam olhar para o aluno como gente. Isso cria outro compromisso; cria diálogo, cumplicidade. Cria a possibilidade de ultrapassarmos os limites que nós mesmos temos nos imposto ao longo da história. Porque os limites e crises de hoje na educação fomos nós mesmos que criamos ao longo da história, não foi algo que caiu do céu. O caminho se faz ao caminhar. Caminhar é um processo às vezes doído, às vezes alegre. E nós estamos caminhando.
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